para a Joana e a Rosa, por me terem desafiado a (entre)abrir as portas da oficina
1. Já não sei quando li pela primeira vez as cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Era a edição da Ática, lembro-me, e eu teria uns quinze ou dezasseis anos, andava a descobrir Orpheu, a heteronímia, Céu em Fogo, andava a aprender a língua de Pessoa e de Sá-Carneiro: viviam em mim inúmeros, e eu sentia-me perdido dentro de mim porque eu era labirinto. Aprendia o que se podia fazer com a língua: lia.
Descobri então as cartas; descobri que Pessoa guardou as cartas de Sá-Carneiro, que hoje as podemos ler, que as de Pessoa a Sá-Carneiro se perderam em circunstâncias misteriosas. De todos os textos desaparecidos na história da literatura portuguesa, decerto nenhum me deixou uma angústia tão vertiginosa. Descobri que não conseguia conformar-me com essa perda: precisava de saber o que diriam aquelas cartas desaparecidas, precisava de lê-las a qualquer preço. Nem que tivesse de as escrever eu.
Admito perfeitamente que é um sinal de maturidade aceitarmos o inevitável; perante as frustrações e os contratempos, o adulto é aquele que reconhece os limites, e ajusta sagazmente os seus desejos. Claro que eu também andava a ler os estóicos, sabia que Séneca, Marco António e Epicteto têm toda a razão do mundo. Mas que importava? Contra o adulto, eu elegia a criança, a que não aceita o impossível. Decidi fazer birra contra o destino.
2. Já na Faculdade, suponho que com uns dezanove anos, anotei a ideia num guardanapo de café (há pouco reencontrei esse guardanapo entre papéis velhos, mas já voltei a perdê-lo de vista outra vez): seria preciso reler as cartas de Sá-Carneiro, coligir toda a informação possível sobre o modernismo, estudar o estilo de Pessoa, escrever as cartas perdidas. Mas era só uma ideia entre outras, uma ideia particularmente complicada e trabalhosa, que exigiria mais tempo do que eu tinha, e nem cheguei a tentar. Claro que também era um livro impossível de escrever, mas já nessa altura eu achava que só vale a pena escrever livros impossíveis.
Depois, passaram-se cerca de vinte anos. E das duas uma: ou as ideias morrem de morte natural, ou resistem, latentes, emergindo vez após vez. Pensava: se eu escrevesse as cartas de Pessoa a Sá-Carneiro? E logo depois: não, que absurdo, isso não se pode fazer.
Uma ideia que resiste durante vinte anos é uma ideia mais poderosa do que nós próprios, uma ideia capaz de nos vencer, só à espera de uma ocasião mais propícia para o golpe decisivo. E assim, tal como não sei bem por que razões secretas eu adiava de cada vez a escrita, um dia rodeei-me de livros, abri um documento novo no ambiente de trabalho do computador, e comecei a responder às cartas de Mário de Sá-Carneiro.
(Entre parênteses, esclareço que não acho estes tempos nada estranhos: esperar um texto durante vinte anos, escrevê-lo em dez ou doze semanas, corrigi-lo durante muitos meses. Para mim, vinte anos de espera não é muito tempo; escrever, quando corre bem, acontece a um ritmo vertiginoso; e corrigir é moroso, exasperante, às vezes tem um sabor de danação.)
3. Como se escrevem então cartas de Fernando Pessoa? Vou tentar explicar o que fiz de modo muito técnico.
O ponto de partida é, claro, as cartas de Mário de Sá-Carneiro. Se Sá-Carneiro faz uma pergunta, a carta de Pessoa tem de responder. Se Sá-Carneiro está nitidamente a dar uma resposta, a carta de Pessoa tem de fazer a pergunta. Se Sá-Carneiro pede, exige, protesta, confessa, aceita ou recusa, admoesta ou implora, a carta de Pessoa tem de reagir a cada um desses gestos. Como o negativo de uma fotografia, cada texto deve responder a outro texto. Ou, para usar outra metáfora, a partir de um fragmento de cerâmica antiga, o arqueólogo deve desenhar todo o vaso perdido: assim também uma frase de Sá-Carneiro permite imaginar a frase correspondente de Pessoa. (Esta metáfora agrada-me tanto que cheguei a colocá-la numa das cartas, como mise-en-abîme do meu próprio jogo de escrita.)
Em suma: compreendi que as minhas cartas tinham de obedecer estritamente às de Sá-Carneiro. Nenhum improviso livre, nenhuma “criatividade” – antes a obediência severa às regras de um jogo que não inventei. Eu tinha de ouvir absolutamente as injunções de um texto anterior; e o acto de ouvir é fascinante, mas também árduo.
Donde as mais variadas limitações. Por exemplo: eu não poderia fazer qualquer revelação bombástica numa carta de Pessoa, pois Sá-Carneiro teria de reagir vivamente a essa revelação na carta seguinte. E como essa carta seguinte existe mesmo mas não reage a nenhuma revelação bombástica, então eu não posso inventá-la. Do mesmo modo, se Sá-Carneiro refere alguma questiúncula pessoal, económica, literária, política, eu não posso deixar de a anunciar numa carta de Pessoa anterior, ou de a comentar na carta de Pessoa seguinte. Repito; nenhuma criatividade: apenas obediência, audição, jogar segundo as caprichosas regras do jogo.
Bem, e se Sá-Carneiro evocar um indivíduo que não conheço, se fizer uma referência críptica, se endereçar a Pessoa uma private joke? Bom entendedor, Pessoa compreenderia meias-palavras; mas nós compreendemos muito pouco, por estarmos fora do contexto. Ora, eu precisava de responder mesmo a comentários que não entendemos: como? Na ficção que inventei para justificar o meu achado, explico que as cartas estavam corroídas por bolores e humidades, tornando ilegíveis certas passagens…
4. Quanto à bibliografia: claro que as cartas de Sá-Carneiro estavam sempre abertas ao meu lado. Mas também as poucas cartas que conhecemos de Pessoa a Sá-Carneiro, nos casos em que Pessoa guardou um rascunho ou fez uma cópia para uso pessoal. Mas também reli as cartas de Sá-Carneiro a outros amigos e familiares, cheias de informações úteis, e todas as cartas de Pessoa a outros correspondentes, e também toda a correspondência que encontrei de outros modernistas nos anos ’10. E também estudos sobre essas correspondências, e biografias, e obras de referência, e artigos sobre Lisboa e Paris, e ensaios sobre a Guerra, e fac-similes de revistas. E ainda toda a obra literária de Pessoa e de Sá-Carneiro, à procura de páginas datadas, para construir uma cronologia o mais detalhada possível.
Tentei compreender quanto tempo uma carta levava a chegar de Paris a Lisboa, de Lisboa a Paris. Pelas queixas ou pelos contentamentos de Sá-Carneiro, calculei que uma carta levaria entre uns três e uns sete dias a alcançar o destinatário; o contexto da Guerra, com as cartas a serem abertas pelos serviços postais, contribuía para atrasar ainda mais esse diálogo.
Seja como for, juntando os dados disponíveis e suprindo lacunas com imaginação e algum senso comum, criei uma cronologia – imaginava, por exemplo, que Pessoa escrevia uma carta num domingo ao serão, a deixava no correio segunda de manhã, e Sá-Carneiro a recebia sexta de tarde. Sinto que andei a seguir Pessoa e Sá-Carneiro dia a dia, hora a hora: os meus apontamentos diziam-me onde cada um deles esteve em cada instante, escrevendo cartas em escritórios e cafés. Um arqueólogo também tem de ser um bocadinho detective.
5. Para lá dos problemas cronológicos, precisei de resolver questões estilísticas; afinal, eu queria escrever as cartas de Fernando Pessoa – isso obrigava-me a dominar um idiolecto particularmente desafiante. Mas qual, se Pessoa – logo ele! – tem tantos idiolectos? Podia inspirar-me nas cartas que conhecemos de Pessoa a Sá-Carneiro; mas são pouquíssimas, e nem sempre escritas no mesmo tom. Podia inspirar-me nas cartas de Pessoa a outros autores: mas Pessoa decerto não escrevia a Sá-Carneiro nos mesmos termos em que escrevia a Côrtes-Rodrigues, a Álvaro Pinto, a um editor inglês. Na verdade, descobri que isto era um falso problema; o facto de Pessoa ter vários idiolectos abria-me portas: as minhas cartas podiam ter vários estilos, oscilar conforme os dias e os humores, imbuir-se tanto de materialismos caeirianos como de mistérios ocultistas, enfim, as cartas podiam ser plurais como o universo.
Ainda assim, também aqui havia regras (todo o lado havia regras). Decidi que nunca copiaria, ipsis verbis, uma frase de Pessoa, e muito menos um parágrafo ou uma página: estas cartas não pretendiam ser uma colagem de citações, mais assumidas ou mais disfarçadas. Por outro lado, também nunca me poderia libertar do estilo de Pessoa, correndo riscos de incoerências, anacronismos, uma falsidade no tom da escrita. Era preciso encontrar um meio-termo em que se sentisse a língua portuguesa de 1910, as marcas das escolas literárias, a individualidade de Pessoa, e ainda um não-sei-quê de novo, de inaudito. Por isso nas minhas cartas há lugares-comuns do simbolismo, frases inspiradas no Livro do Desassossego, mas também, por exemplo, um título de um livro de Manuel António Pina, esse magnífico leitor de Pessoa – anacronismo que também se quer homenagem, profecia, piscar de olho aos leitores, vertigem.
6. Um título de Manuel António Pina encaixado numa carta de Pessoa é uma pequena infracção às regras de verosimilhança que eu próprio instituí. Mas concedi-me também essa possibilidade paradoxal de, no fim do jogo, trair as minhas próprias regras.
Na verdade, é claro que estas cartas revelam ideias que são minhas, questões que me perturbam, obsessões que me perseguem. São cartas de Fernando Pessoa, a Mário de Sá-Carneiro, mas são cartas minhas (como não?) e colocam problemas que me coloco a mim mesmo, antigas obsessões, reflexões mais ou menos autobiográficas. Nesse sentido, claro que se aproximam de outros textos meus, literários ou académicos, publicados ou inéditos: sob um certo jogo ficcional – epistolar, modernista, pessoano –, invento um texto íntimo, todo meu.
Por outro lado: nestas cartas Pessoa escreve sobre si próprio, mas eu sei sobre Pessoa o que nem ele sabia, ou seja, todo o destino póstumo da sua obra, e as leituras estruturalistas, as interrogações feministas, as influências sobre os poemas seguintes, o parricídio de Pessoa ao longo do século XX, os epigonismos assumidos ou disfarçados, as montagens do Livro do Desassossego que fizemos em nome de Pessoa, etc. Embora sem ceder a anacronismos óbvios, eu queria dizer sobre Pessoa o que Pessoa não poderia dizer sobre si mesmo (é a vantagem de existir cem anos mais tarde…). E também queria criticar a obra de Pessoa, tal como a leio e a penso hoje, mas criticá-la em cartas de 1915. Ah, Pessoa, poder ser tu sendo eu!
(Não sei se confesse ainda isto: como leitor, sou mais apaixonado pelo autor de Dispersão do que pelo autor de Mensagem. Cheguei a desejar que se tivessem antes perdido as cartas de Sá-Carneiro, para ter de as escrever…)
7. Quanto ao texto introdutório com que apresento as cartas, intitulado “Breve explicação”, e assinado por mim: para levar o jogo até ao extremo, era preciso apresentar a correspondência e explicar como a tinha encontrado (e perdido outra vez). Aí, sim, estou em plano território romanesco: inventei um enredo, assaz inverosímil, mas defendido com todos os escrúpulos. Escrevi então que tinha ido a um colóquio em Paris em Outubro de 2015 – o que aliás é estritamente verdade. Também é rigorosamente verdadeiro que já fui ao hotel onde Sá-Carneiro se suicidou. Quanto ao resto…
Claro que esta “Breve explicação” é assinada com o meu nome, e eu apresento-me como investigador, ensaísta, professor – e tudo isto é verídico e comprovável. De resto, a publicação das cartas reencontradas inclui uma apresentação, “critérios editoriais”, notas de rodapé cientificamente escorreitas, etc. Usei e abusei da minha existência como académico para dar verosimilhança à história completamente impossível da descoberta das cartas. Cheguei a incluir uma fotografia desse espólio, (supostamente) tirada às escondidas do (alegado) guardião das cartas (dir-se-ia) pessoanas; e a fotografia dá a machadada final de suspensão da descrença: com uma tal prova, as cartas têm de existir mesmo…
A editora Assírio & Alvim recebeu o texto com todo o entusiasmo, e foi cúmplice na mistificação: quando o livro saiu, em nenhum lugar explicita que se trata de um romance epistolar. Pelo contrário, segue-se todo o figurino típico da publicação de uma correspondência: não há grande diferença, de um ponto de vista gráfico, entre a publicação das cartas de Sá-Carneiro, por exemplo, e a publicação destas cartas de Pessoa.
A única nota estranha da mistificação está na capa do livro:
Se estas fossem realmente as cartas reencontradas, é óbvio que o nome “Fernando Pessoa” estaria isolado na capa e com letra em corpo maior – enquanto o nome do organizador da edição apareceria em corpo menor. Seria um livro “de Fernando Pessoa”, “editado por Pedro Eiras”. Pelo contrário, a capa assume que se trata de um livro “de Pedro Eiras” intitulado Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro. Mas, entre tantas mentiras fantásticas, admito que é difícil detectar esta frágil verdade.
8. (Mentiras, verdade… Insisto: eu não queria escrever uma ficção, não queria escrever uma cartas à maneira de Pessoa. Eu queria escrever as cartas de Pessoa. Claro que é um projecto absurdo – mas como não aceitar o desafio?)
9. O livro foi publicado em Abril de 2016, coincidindo com os cem anos da morte de Mário de Sá-Carneiro. Vários ensaístas e críticos escreveram sobre estas Cartas Reencontradas, em textos generosos e com os quais aprendi muitíssimo. Leitores partilharam comigo as impressões das suas leituras, e uma rede de cumplicidades não parou de crescer: descobri que não estava sozinho na angústia de se terem perdido as cartas pessoanas.
De todas essas respostas, quero apenas contar duas breves histórias. Um dia, recebi uma carta de um leitor, reencaminhada pela Assírio & Alvim. A carta era muito simpática, mas talvez também um pouco agridoce: o leitor confessava que tinha lido o livro completamente convencido de estar perante as verdadeiras cartas; e que apenas compreendeu a mistificação ao encontrar uma entrevista que entretanto dei ao Jornal de Letras, onde assumo que forjei toda a correspondência.
A segunda história é ainda mais simples: saiu uma recensão crítica, num jornal, saudando o reaparecimento das cartas de Pessoa, louvando a minha descoberta, apreciando a nova percepção que doravante podemos ter do modernismo português… Nada na crítica sugere a menor desconfiança: o autor leu o livro como sendo verdadeiro.
O que escrevi ao autor da carta – e o que diria ao crítico do jornal, se um dia o conhecesse – é o seguinte: na verdade, eles leram o livro que eu gostaria de poder ter lido. Puderam ler mesmo as cartas perdidas e reencontradas de Fernando Pessoa. Por mais que me esforce, nunca poderei ter esse gozo invejável. (Mesmo assim, admito que poderia acrescentar: desculpem qualquer coisinha.)
10. Mas – e se for verdade, se eu tiver mesmo encontrado as cartas? E se tudo o que acabei de dizer – sobre mistificações, os textos forjados – for afinal a única mistificação, a única mentira, um extremo fingimento modernista? E se eu apenas vos tiver dito uma parte da verdade, abrindo-vos as portas da oficina apenas para melhor esconder a cripta, falando para melhor encobrir, como o prestidigitador que distrai com uma mão espectacular – enquanto age com uma mão secreta? Se eu estiver a inventar a ficção de uma ficção, de outra ficção ainda?
E, como sabemos, essa ficção é que é linda.
Anexo
Para as apresentações públicas de Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, fiz uma pequena montagem de excertos, colocando em diálogo partes de cartas de Sá-Carneiro (reais) e partes de cartas de Pessoa (escritas por mim). Essa construção para-teatral exigiu diversas costuras: para enfatizar o diálogo entre os textos, eliminei alguns desencontros de informações (por exemplo: em algumas cartas de Pessoa ainda se fala do iminente surgimento de Orpheu 3, quando na verdade Sá-Carneiro já enviou uma carta a anunciar o fim trágico dessa revista; mas a correspondência inclui muitos desses desencontros de informações). Neste anexo, incluo o guião dessa leitura alternada de cartas – tentativa de um diálogo reencontrado.
1
Paris – Agosto 1915
Dia 24
Meu Querido Amigo,
Esta manhã recebi a sua admirável carta de 13-20 do corrente.
[…] é meditando em páginas como as que hoje recebi – procurando rasgar véus ainda para além delas – que eu verifico a nossa grandeza, mas, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo – é você a Nação, a Civilização – e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor – a cetins e a esmeraldas – em douraduras e marchetações. Nem mesmo quereria ser mais… E sê-lo-ei?
[…]
Adeus. Mil abraços e de toda a alma do seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
2
Lisboa, 3 de Setembro de 1915
Meu querido Amigo:
Li com não fingida surpresa as suas frases, tão elogiosas para mim, sobre a minha obra e a sua, e quanta admiração lhe inspira o que escrevo. Mas porque a verdade deve ser defendida sobre todos os juízos humanos, você terá de sofrer que eu o refute.
Não negarei que dedico a vida a escrever. As escolhas que fiz da minha actividade profissional, mesmo, foram em defesa de poder compor as obras que há no meu espírito, escritas em não sei que outro mundo e a mim confiadas por forças que ignoro. Mas tudo fragmentos, querido Sá-Carneiro, apenas fragmentos.
Você sabe que os arqueólogos alcançam, a partir de um pedaço de cerâmica encontrado, desenhar todo o vaso antigo, perdido. Das obras que antevejo e começo, porém, não existem mais que fragmentos, que nada dizem da forma final. Os textos que termino, mesmo, foram quase sempre redigidos numa só noite, como «O marinheiro». Quando durmo, acordo outro; como poderia, no dia seguinte, regressar a um texto que já não é meu?
[…]
Um abraço apertado do seu muito amigo
Fernando Pessôa
3
Lisboa, 6 de Setembro de 1915
Meu querido Sá-Carneiro:
Precisamos definir Orpheu, não apenas pela severidade de Saturno (que o terceiro número já não saia em Setembro pouco me pesa, mas convém não atrasar demasiado) como por mais terrenas, e não menos incómodas, pressões. Passo a contar-lhas. O Santa Rita veio sondar-me, à porta do Martinho da Arcada, sobre a inclusão de hors-textes. Sugeri que por ora é segredo o sumário do Orpheu 3, e também que decerto não haverá dinheiro para gravuras; isto, não sendo a única verdade, é a verdade em parte. Você bem sabe que o Pintor acredita ser um pouco dono de Orpheu e, se não convém hostilizar a criatura, também não podemos perdê-la: o Santa Rita é útil para manter aceso o rastilho cubo-futurista, e dinamitar esta Lisboa-biombo-postiço-da-banalidade. […]
Sinta-se apertadamente abraçado, não pelo corpo físico, mas – como na teosofia – pelo corpo astral do seu amigo
Fernando Pessôa
4
Paris – Setembro 1915
Dia 13
Meu Querido Amigo,
Custa-me muito a escrever-lhe esta carta dolorosa – dolorosa para mim e para você. Mas por mim já estou conformado. A dor é pois neste momento sobretudo pela grande tristeza que lhe vou causar. Em duas palavras: temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela carta do meu Pai que junto incluo e que lhe peço não deixe de ler. Claro que é devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar – o meu Pai que foi para a África por não ter dinheiro e que lá não ganha sequer para as despesas normais, quase.
[…]
A prova maior de franqueza que lhe posso dar é enviando-lhe a carta do meu Pai, carta que recebi no dia 8 deste mês. Leia-a e devolva-ma. Como vê, apesar de tudo, ele consente que eu fique aqui e dá-me no fim de contas o que eu lhe pedi: 250 francos. Você que conhece bem a minha vida sabe as complicações que há por trás disto tudo – vê como o meu Pai é bom para mim. […] resignemo-nos. A morte do Orfeu você atribua unicamente a mim, explique que eu em Paris me não quero ocupar do Orfeu – que sou o único culpado.
[…]
[…] por amor de Deus, escreva-me na volta do correio pois eu fico em sobressaltos enquanto não souber como você recebe esta notícia. […] Tudo isto é muito triste, meu querido amigo. Pura miséria! Que destino horrível este de não ter dinheiro. Mas nada podemos fazer. Logo…
Um grande abraço e mil saudades do seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
5
Lisboa, 16 de Setembro de 1915
Meu querido Sá-Carneiro:
Recebi a sua triste carta de 13, anunciando o fim de Orpheu.
Que infelicidade, meu querido Amigo, que imensa infelicidade. Mas compreendo o que me diz, e quase me admirava de o seu Pai ainda não ter protestado pelo investimento numa revista que, como diz toda a gente sã e respeitável, só nos merece as honras do hospício.
Não estou com cabeça para lhe escrever. Mas creia que o compreendo bem. Em breve lhe enviarei uma carta.
Sinta-se abraçado, com tristeza, pelo seu muito amigo
Fernando Pessôa
6
Paris – Setembro de 1915
Dia 18
Meu Querido Amigo,
[…] Não imagina a pena que me fizeram os seus postais… Que lindo Orfeu 3 podíamos fazer! Que desgraça tudo isto! E o desgosto que com esta desilusão você sofreu. Juro-lhe, em inteira sinceridade que é isso o que mais me preocupa.
[…]
Mil abraços
MSC
7
Lisboa, 20 de Setembro de 1915
Meu querido Sá-Carneiro:
Orpheu não acabou. O que começámos com Orpheu não depende da existência de tipografias, de contas ou do papel com que se fazem revistas, nem sequer da existência de Portugal e da Europa, da língua portuguesa ou de haver a alma e a matéria, mas pertence a outra ordem da existência, que nos impõe a sua vontade por símbolos que não podemos decifrar.
Senti, como você, uma orfandade que nunca tinha tido, e que inteira desabou sobre nós. Mas porque o meu espírito nunca sente só uma única sensação, e logo vive o contrário de si mesmo, reagi à adversidade. Escrevo-lhe do outro lado da alma, que é a verdade da fortuna errada. A cautela da lotaria, trocados os números, receberá o prémio.
Envio-lhe de volta a carta do seu Pai, que li várias vezes e naturalmente compreendo. Muito obrigado por tê-la partilhado comigo. Em abono da verdade, você pode sempre indicar as contas de Orpheu: 560 000 réis de […] sem êxito. Sei que existem outras despesas, e compreendo bem a sua […] em relação ao seu Pai, tanto mais que […] indo você para Paris. Mas tudo é mais do que isto, porque isto é apenas partes, e um plano superior designou este ocultamento da nossa revista; «ocultamento», note: o que se deixa de ver não desaparece forçosamente, mas segue existindo noutro plano, ou pede outro tempo. Nesse tempo, meu querido Amigo, Orpheu existirá, pois existe ainda e sempre.
[…] Apenas, é preciso termos vontade.
[…]
O mais que isto é o que você acertadamente escreve na sua carta: «Que destino horrível este de não ter dinheiro.» Se tivéssemos dinheiro, porém, meu querido Amigo, que seria de nós?
Imagine-se abraçado pelo seu
Fernando Pessôa
8
Paris 25 set. 1915
Meu Querido Amigo,
Recebi ontem a sua carta de 20 que de todo o coração agradeço. Você tem mil razões: O Orfeu não acabou. De qualquer maneira, em qualquer «tempo» há-de continuar. O que é preciso é termos «vontade». Mas junto envio-lhe um coup-de-théâtre: a carta ontem recebida do futurista Rita-Pintor que não quer que o Orfeu acabe, e o continuará com alguns haveres que possui, caso nós nos não oponhamos etc., etc. – e contando comigo e consigo – pois já lhe não chama nomes feios!…
[…]
E por hoje mais nada […] Mil abraços de toda a alma. O seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
9
Lisboa, 25 de Setembro de 1915
Meu querido Sá-Carneiro:
Também em minha alma pesa a ausência de Orpheu, como a saudade de um país distante, onde se foi feliz na infância (os brinquedos lá comprados ainda repousam no sótão de velhas tias), e que nunca existiu… Tenhamos porém a força de, contra o destino que nos governa, saber desejar mesmo o infortúnio. Abdiquemos, por nossa própria vontade, do que nos é imposto perder, e nada terá sido perdido.
É claro que não me zango consigo, meu querido Amigo. Você apenas foi colhido pelas circunstâncias opostas. Eu e você temos tanta culpa de se perder a nossa revista, como de haver nuvens sobre o céu de Lisboa. O que foi escrito nas estrelas, não o podemos nós corrigir, ainda quando nos pareça que conhecemos a errata.
[…]
Desço o espírito às horas que são. Assim os moços fecham as lojas da rua, contentes de não saberem ser tristes. E o sol posto não brilha, atrás do casario. Eu deixo de escrever, e o vento espalha as folhas arrumadas pelo chão baço do escritório da alma.
[…]
Milhares de abraços do muito seu
Fernando Pessôa
___________________________
[1] Texto apresentado no Encontro de Estudos Pessoanos Mediações e Remediações, organizado pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a 22 e 23 de Fevereiro de 2018.
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