Algumas pessoas atentas começam agora a descobrir o sentido de determinados acontecimentos ocorridos há cinquenta anos. Certa gíria chama a isto perspectiva histórica. É bem de ver que não se pode considerar numerosa a gente que, decorridos cinquenta anos, já possui uma perspectiva histórica. Um clima espiritualmente desfavorável, empenhamentos que afastam a objectividade, sem contar que meio século pouco significa para uma correcção pedagógica da estupidez – tudo isto, digo, não tem permitido tornar-se mais geral o entendimento da lição revolucionária que nos legou a geração de Fernando Pessoa.
A ambiguidade de uma geração é algo que nasce não dela mesma, como entidade criadora, mas da resistência oferecida pelos seus elementos estáticos. A decifração de um tempo, isto é, a solução da sua ambiguidade, realiza-se mercê dos elementos criativos do tempo seguinte, acção esta que é nada mais nada menos do que a consecução da perspectiva histórica. O comum das pessoas não possui mais do que a aceitação (induzida) das significações. Elas aceitam, por espírito de convenção, o que a história garantiu. A seu respeito não se deve falar, por conseguinte, em conseguimento de uma perspectiva. A compreensão da massa é sempre formal, jamais atingindo a intimidade das forças que tornaram revolucionário certo momento.
Mas nem sempre, considerando mesmo que só as élites intelectuais participam do progresso no conhecimento e da decifração das suas cifras de base, nem sempre essas próprias élites se movem na direcção propícia à captação dos valores inovados pela geração anterior.
Isto mesmo se constata através da leitura de um belo ensaio que Eduardo Lourenço publicou há dois anos, numa revista brasileira, sobre o que ele certeiramente denomina a contra-revolução da Presença. Tomando como representante português do espírito moderno europeu o grupo de Pessoa e pondo-o em jogo com a geração seguinte, essa que aparentemente se filiava no mesmo impulso inovador – Eduardo Lourenço apresenta de modo indiscutível o equívoco de uma perspectiva histórica que os presencistas supunham e afirmavam possuir. Contudo, a Presença era provinciana, académica de certa maneira, anti-revolucionária com certeza. Assim, não é difícil verificar-se que a geração posterior ao Orpheu, em vez de criar a atmosfera propícia ao desenvolvimento dos princípios revolucionários contidos nele, veio atrasar de muitos anos a frutificação do exemplo.
Mas nós somos um povo infeliz, já que, logo após o provincianismo presencista, surgiu o Novo Cancioneiro. Aliava este, à reacção presencista, um humanitarismo sentimental assente num complexo de culpa pequeno-burguês, que menos ainda o inclinava para a compreensão do profundo revolucionarismo orfeico. Deste modo se foi relegando para um futuro que nos deseuropeizava a recuperação de uma modernidade viva.
Como mobilizador de consciências, o surrealismo, tardiamente aparecido em Portugal, não pôde solucionar o nosso atraso. À parte o valor pessoal, e até o valor da sua consciência revolucionária, os nomes de Mário Cesariny e António Maria Lisboa não agem visivelmente sobre a neutra paisagem da nossa poesia. E onde isso lhes não foi possível, é a história complexa de toda uma situação mental ainda presente. Razões terríveis deslocaram para uma acção suspeita como valor revolucionário aquelas forças pelas quais se poderia ter tornado espiritualmente europeia a nossa mentalidade.
O neo-realismo, vinculando a literatura a uma acção virtualmente transformadora, mas que os homens não souberam exercer no devido plano prático, criou apenas uma curiosa alienação (termo que lhe é excessivamente grato), um cómodo processo de fuga. Para utilizar uma expressão dos domínios da psicanálise, os neo-realistas portugueses realizaram um transfert. Transferiram para má literatura o que deveria ter sido uma boa acção social. Creio que, assim, pacificaram a sua perturbada consciência de pequeno-burgueses e imaginaram ter reformado o gosto, a sensibilidade e a imaginação. A verdade, contudo, é que não conseguiram acordar uma consciência de classe nas camadas populares (e, se não era esta a sua tarefa como força de intervenção social, qual seria ela então?). Mas vejamos: as camadas populares não liam. Nesse caso, para quem escreviam os neo-realistas? Ninguém soube criar, a este respeito, responsabilidades morais tão grandes. O paradoxo da sua acção literário-social é evidente. Por outro lado, tão-pouco realizaram, nas camadas intelectualmente interessadas, aquele convite à revisão de valores que é o primeiro sinal, no domínio da cultura, de uma proposta inovadora.
Aliás, parece existir algo de centralmente errado no realismo socialista, dado que não se produziu, em nenhum país do mundo, uma única obra superior inspirada pela doutrina. Será esse erro a recusa de uma dimensão metafísica? Maiakovski? Quem poderá resistir a citar estes dois períodos de Sophie Laffitte? – «Dépassant la foule, de toute la puissance de son génie, Maiakovski subit le sort tragique de tout artiste qui renie sa nature profonde. Acculé à un impasse, il ne lui restait plus qu’à sortir de ce monde qu’il avait voulu recréer, plier à son orgueilleuse vision.» E, em todo o caso, a visão de Maiakovski vinha carregada do poder místico da tradição espiritual russa. Era uma visão. Mas hoje, utilizando embora o que nas circunstâncias seria uma ilegítima herança metafísica, quem poderia transformar em mito heróico o que é muitas vezes decepcionante experiência político-social?
Existe agora a obsessão do que se costuma denominar testemunho social. Quando um Homero explora o princípio do heroísmo e o valor apaixonado do acto humano, ou quando um Shakespeare levanta a problemática da razão envolvida pela paixão, ou ainda quando um Goethe caminha do direito à experiência total para o dever de uma ordem superior à paixão indiscriminada – não englobam a afirmação de uma urgência de definido testemunho do seu acto como correspondendo a uma vivência geral do tempo. Então, acreditava-se no indivíduo, crença que certa filosofia ou certa pragmática não haviam posto em dúvida. Homero, Shakespeare e Goethe simbolizavam, no plano individual da criação, uma experiência humana.
Mas hoje deslocou-se a capacidade criadora do indivíduo para a comunidade, crendo que o indivíduo é apenas uma flexão do poder criador dela. Talvez pareça dignificar-se assim o indivíduo, por um lado, concedendo carácter universal ao seu acto; e, por outro, a sociedade, dando-lhe qualidade essencialmente criativa. Mas algo de vital se perdeu nesta operação – e essa perda, mal-grado as apressadas e solícitas correcções posteriores, deu origem a um dos maiores equívocos da arte contemporânea.
Maiakovski instalou-se no ponto crucial desse equívoco. O seu princípio da encomenda social da obra de arte ilustra sobretudo a terrível obediência do artista à instituição, partindo da ideia (por demonstrar) que a instituição contém em si os poderes originais da criação e os poderes criadores da originalidade. Se a instituição fosse, por definição, uma categoria revolucionária, é evidente que tudo estaria certo, mas a verdade é que ela representa o ordenamento congelado do impulso revolucionário que lhe deu origem. Só a instituição como elemento permanentemente revolucionário – o que é contradição nos termos – serviria a permanente afirmação revolucionária que é o acto de criar. Mas o movimento é qualidade da imaginação, quer dizer, atributo da individualidade – ao contrário da fixação institucional, da ordem, que é qualidade da razão, quer dizer, atributo da comunidade. É a esta individualidade que se recorre para ultrapassar o estatismo da instituição. Revolucionar equivale a imaginar, a ser individual. Revolucionar é destruir a instituição. O artista deve, por conseguinte, opor-se, em sentido dinâmico, à encomenda social.
Maiakovski pagou caro a convicção de que a sociedade lhe pedia alguma coisa à altura do seu génio. O seu suicídio talvez sirva para garantir a visão súbita da contradição entre um destino de grande artista e um destino de homem social activo. Aliás, a decisão que tomou, no período imediatamente posterior à revolução, de abandonar a política em favor da actividade artística, partiria da ideia de uma incompatibilidade básica de duas tendências. Será excessivo afirmar que a actividade artística (o primado da imaginação, o direito de não aceitar os limites sociais, o carácter metafísico do acto criador) é, no fundo, anti-social, se concebermos a sociedade moderna como um espaço que se organiza em nome da ordem e da felicidade a certos níveis, contra os perigos da imaginação, do desejo e da metafísica?
Na realidade, o problema reduz-se ao choque entre dois grandes valores morais – a aventura e a ordem. Simplesmente, cada um destes princípios ganhou agora enorme poder e vastas implicações. A aventura é mais do que nunca intransigente afirmação individual e, sem dúvida, um acto radical no plano revolucionário. A assumir-se politicamente, só vejo que um artista possa ser anarquista – anarquista vitalício.
Simples confusão de interesses morais é o que está, por conseguinte, na raiz da adesão de um artista a tudo o que não seja o que Sophie Laffitte chama «sa nature profonde». Ética social e ética artística, quando confundidas, renovam perigosamente aquela atitude escolástica contra a qual o espírito moderno, desde a Renascença, se vem rebelando. O esforço da modernidade parece-me ser precisamente esse: libertar o espírito de qualquer moralismo. E lembremo-nos: na base do realismo socialista existe um ríspido rigorismo moral capaz de, em muitos aspectos, avizinhá-lo da velha literatura de edificação e exemplo que alimentou as boas intenções de vários séculos da cultura cristã ocidental.
Nós somos um povo seriamente contaminado de moralismo, por um lado, e de esclavagismo sócio-político, por outro. Nada melhor para a criação de um mito optimista moralizante, de benefício popular. Se isso pode inspirar uma realização, o caso é que o nível do assunto não deve ser decerto o da ética artística. Questões destas resolvem-se noutras dependências da acção humana.
Depois, pensar que o acontecimento estético possui as mesmas leis que o acontecimento social, ou mesmo vital, é ignorar um ponto básico. A ser assim, não se compreenderia que o psiquismo humano tivesse necessidade de criar uma situação de vivência da mesma natureza de outras já existentes. Se o homem cria uma vida nova, é porque o seu espírito exige novas leis. O homem escreve um poema para se opor à vida e ao mundo, para negar o poder dos homens e libertar aquele «daemon» interior que, ao mesmo tempo que indica uma tensão criadora, manifesta igual tensão destruidora. E não se trata aqui sequer de considerar a liberdade individual do artista, mas de ser justo e inteligente para com o espírito humano.
*
Se parecerem demasiado longas ou um pouco inoportunas estas generalidades, considere-se que procuram caracterizar, do meu ponto de vista, a época em que decorreu a lenta e duradoura actividade poética de Edmundo de Bettencourt. É certo que tal época assume, nas circunstâncias, valor negativo e serve só, por contraste, para indicar a personalidade independente do poeta.
Escapando aos lugares-comuns de um tempo – tão poderosos e, aparentemente, tão irrevogáveis –, o autor de Rede Invisível assumiu, toda a vida, um silencioso desafio (e silencioso porque Bettencourt sempre fugiu à publicação) que, se significa a recusa de uma vida literária, mostra também discreta mas convicta desaprovação quanto ao papel que se vinha exigindo à poesia. Apraz-me salientar este significado moral de um silêncio de trinta e três anos. A decisão de se manter intacto dentro da sua própria aventura teria principiado já na época presencista, quando Bettencourt rompe com a revista e, ao mesmo tempo, não aparece na direcção da dissidente Sinal. Daí em diante haveria a posição solitária, a concepção da individualidade sistemática que se afirmaria pelo incómodo e fecundo repúdio dos grupos. Tal projecto vai custar-lhe algum esquecimento, pela parte do público e confrades, e a realização retirada de uma poesia extremamente pessoal e pouco referenciável às propostas das várias gerações que se irão sucedendo.
Assim, logo após a publicação de O Momento e a Legenda, onde aparecem ainda alguns exemplos quase típicos de poesia presencista, o poeta começa a escrever os primeiros trechos de uma lírica que, alguns anos mais tarde, atingiria o completo desenvolvimento no conjunto Poemas Surdos.
De que é que primeiramente se desembaraça o poeta? Quanto a mim, ele desembaraça-se de dois grandes fardos. Primeiro: do narrativismo presencista, tão evidente sobretudo em Régio e Torga. Se é certo que, por vezes, o discurso ainda apareça depois nalgumas composições, será elaborado agora de outra maneira. Terá sentido mais moderno, quer por nele se deslocarem subjacentemente várias correntes que se interceptam, quer por os seus nexos serem mais de sugestão que de narração. O discurso ganha uma polivalência de movimentos e significações que não possuía antes, dirigido como estava à apresentação de um tema e de um significado. É fácil estabelecer o elucidativo cotejo entre, por exemplo, Noite Ferida e As Meninas Velhas, no último dos quais a emoção é fornecida como que lateralmente e o significado profundo aparece para além das palavras, num momento posterior, deduzido do subtil contraponto entre duas emoções que as arcaicas e tranquilas tias e o mar de onde o poeta regressa tendem a personificar.
Assim, parece-me que a primeira decisiva conquista de Bettencourt, com referência à modernidade e à sua própria originalidade, surge na nova concepção do discurso.
O segundo passo é talvez ainda mais importante. Poderei chamá-lo, para simplificar (embora tal simplificação comporte riscos), o encontro com a imagem. A imagem (e tome-se o termo com o sentido que uma moderna nomenclatura lhe possa dar) conduzirá o poeta aos domínios da analogia, isto é, a uma nova noção das relações entre os elementos do real. Digo: concepção nova da realidade, consciência de inéditas dimensões dela. Pela aproximação agora possível entre as distâncias do real, pela capacidade de fusão de antinomias, a poesia de Bettencourt torna-se mais profunda, complexa e densa. O tema desaparece, ou fragmenta-se, ou somente se insinua, ambíguo ou pré-textual, apenas.
Hipotéticos encontros com o imagismo anglo-americano e o surrealismo francês, a lição rimbaldiana difusa na poesia europeia, teriam auxiliado o poeta na conquista destoutra dimensão da realidade. De qualquer modo, ela apresenta-se inteiramente pessoal.
Não é sem comoção que lemos os Poemas Surdos, lugar onde desemboca a terrível e libertadora aventura do poeta. Quando pensamos que esses textos foram escritos num tempo em que imperava a estética presencista e começava a instalar-se o dogma neo-realista, não podemos deixar de sentir um estremecimento. Estes poemas são, ao lado de algumas composições de António de Navarro e Vitorino Nemésio, a quase única reconfortante liberdade da poesia portuguesa, antes do aparecimento de Mário Cesariny e António Maria Lisboa. Mas António de Navarro é prejudicado por falta de atenção e excessiva confiança no acaso, enquanto Nemésio se prejudica a si mesmo pelas qualidades opostas.
Sabemos que Bettencourt, durante o período, ou parte dele, em que escreveu tais poemas, viveu em circunstâncias especiais que não é lícito revelar, nem publicamente interessam. Basta anotar que esses textos nasceram de uma sobrecarga de emoção e imaginação que, normalmente, não é possível ou provável alguém possuir. Evidentemente que o caminho para eles fora iniciado já antes, nos tempos da Presença, mas podemos aceitar que circunstâncias especiais apressaram o seu aparecimento e lhes deram mesmo fisionomia própria.
Não sei o que melhor defina as composições deste período. O insólito das imagens e metáforas, o clima sufocante, a obliquidade da emoção, a medida onírica, o delírio gelado e nocturno – são aspectos seus menores ou fortuitos. Suponho que assentam, precisamente, na ideia de que a poesia não se propõe criar uma realidade poética a partir da realidade comum, mas criar uma realidade independente que se baste a si mesma e seja, ela própria, uma finalidade. A noção do poema como uma vida, organismo com leis específicas e realidade autónoma, é possivelmente a mais revolucionária proposta da lírica moderna. Ideia assente em Rimbaud, embora parcelar e timidamente crescida ao longo de muito tempo, determina o grande salto da poesia contemporânea, libertando-a de certo servilismo em relação aos quadros vitais e à experiência humana. Que a verdade está na imaginação não seria descoberta nenhuma, mas procurar que a própria imaginação deixe de contar com a tradição da realidade para a conquista de uma verdadeira vida e que (sobretudo isso) a imaginação encarregue o poema de realizar o acto de um corte decisivo com os princípios do humanismo e da experiência histórica do sentimento, da ética e da cultura – é algo de soberbamente arrojado.
Oportuno citar o que sobre o assunto diz Hugo Friedrich que, mal-grado a sua simpatia pelas tradições humanísticas, seu gosto clássico e respeito pela concepção de linguagem como instrumento servidor de uma organização historicamente coerente do espírito – indica, com objectividade, o que foi o grande acto revolucionador da poesia moderna.
«A partir de Rimbaud, o crítico vê-se obrigado a recorrer heuristicamente à realidade como termo de comparação, já que só assim poderá apreciar até que ponto esta realidade foi destruída, assim como com quanta violência se rompeu com o antigo estilo metafórico.» […] «Visto que esta (a realidade) é percebida como insuficiente perante a transcendência, a paixão pela transcendência converte-se em destruição cega da realidade. A realidade destruída constitui agora o signo caótico da insuficiência do real em geral, assim como da inacessibilidade do desconhecido. Eis o que se pode chamar a dialéctica da modernidade.»
Friedrich fala depois na afirmação de Baudelaire de que «o acto inicial da imaginação é uma decomposição». O ensaísta germânico sublinha que, nesta decomposição, se inclui, já em Baudelaire, a deformação‚ princípio que «em Rimbaud se converte no processo efectivo da poesia».
Utilizando as suas insuperáveis (insuperáveis num homem tão universitariamente formado) noções de realidade, Hugo Friedrich observa: «Na medida em que se pode dizer existir, contudo, realidade (ou que podemos medir heuristicamente o poema tomando a realidade como critério), esta é objecto de dilatação, decomposição, tensões de contraste, até ao ponto de se tornar uma forma à beira do irreal.» Depois, o ensaísta chama-lhe «irrealidade sensível», na impossibilidade (dele) de saltar sobre os princípios tradicionais das relações entre a poesia e a realidade fornecidas pela cultura e vivência histórica.
Friedrich – inteligente, douto e consciencioso espírito humanista – não se livra de ficar abrangido naquela impiedosa frase de Pierre Reverdy: «Tem-se mais o hábito da vida do que da arte. Apresentar uma obra que se eleva acima desta aparência é exigir uma formidável mudança de hábito.» Com efeito. «A realidade», diz ainda o poeta francês, «não motiva a obra de arte.»
É evidente que as palavras utilizadas por um poeta carregam aquele valor real da designação e referência – do mesmo modo que o poeta maneja parcelas de uma experiência emocional e mental referidas aos quadros gerais da vivência humana. Contudo, o objecto a que a experiência e as palavras se dirigem já nada tem a ver com a realidade e a linguagem da história. Há uma nova realidade. É o poema. Assim é que se pode dizer possuir o poema existência tão própria, independente e suficiente como um corpo. As suas leis são as de uma nova realidade – a realidade do poema.
Parece-me que, neste aspecto, Edmundo de Bettencourt logra não só conseguir alguns poemas onde esta existência se releva das estruturas circundantes de tempo e espaço, isto é, da cultura e quotidiano – mas assume uma atitude sistemática de agente da realidade do poema. Nomes como os de Camilo Pessanha, Ângelo de Lima, Sá-Carneiro e Fernando Pessoa servirão para indicar o que uma posição de modernidade atingira já antes entre nós. Mas qualquer deles não descobriu a tempo, ou não descobriu bem, ou descobriu tantas coisas que não podia ter descoberto tudo – não somente que «a poesia é o real absoluto» do romantismo alemão, mas que é um absoluto real e que o poema é a realidade desse absoluto.
Chamar imagistas ou surrealistas aos textos do Bettencourt desta altura parece-me pouco louvável esforço de enquadramento, próprio só de gente a quem incomoda que o acto pessoal não seja reportável a linhas estabelecidas.
Eles distinguem-se do imagismo pela falta de propósito em criar uma imagem como realidade final de um movimento psicológico, além de a imagem possuir em Bettencourt valor menos representativo do que dinâmico. Não sei em que se distinguem do surrealismo, se concebermos que a Bettencourt não falta confiança nos poderes activos da imaginação, nem força para ultrapassar todas as antinomias, sobre cujo movimento alternado se estabeleceu o conhecimento tradicional. Mas quando se fala em surrealismo, apesar de ele haver precisamente procurado aniquilar a literatura como propósito, pensa-se num típico estilo literário datado de mil novecentos e vinte e tal, trinta e tal, França. Assim, não há vestígios no nosso poeta de lição surrealista. Mas há propósitos surreais, ou pontos de chegada que se avizinham de uma consciência de surrealidade, como os há em Ângelo de Lima, Sá-Carneiro e Pessoa – e os houve em Saint-Pol-Roux, Reverdy ou Perse. Surrealismo é uma incómoda designação escolar que os surrealistas nos forneceram. Não será surrealista (despido o termo do equívoco geracional) todo aquele que transpôs a noção tradicional de realidade, essa mesma a partir da qual Hugo Friedrich se horroriza de Rimbaud, o irrealista, o corruptor da realidade? Nesse sentido, Bettencourt, poeta moderno, é surrealista. Surrealistas, decorrentemente, a sua vocação de liberdade, o conhecimento de um lugar real superior onde se dá a unidade do espírito, a confiança na imaginação como agente recuperador de um mundo que a cultura atraiçoou.
Poemas como Ar Livre, Nocturno Fundo, Noite Vazia, Vigília, Atmosferas, Abrigo, Circunstância são, porventura, os mais altos exemplos desta fase, aqueles em que melhor se atesta o esforço para realizar um espaço poemático completamente coerente na sua estrutura e respondendo à necessidade da imaginação de criar uma vida eficaz para superar a vida sem coerência, sem unidade, sem surpresa, sem plenitude, do chamado real quotidiano. Estes objectos terríveis, respirando na sombra, organizados como corpos que tivessem abolido barreiras da ordenação biológica, no entanto corpos organizados – apelam para a exaltação de certas forças sombrias e implacáveis que o espírito escamoteou, para que no real se pudesse instalar a cidadania. Como um poeta português, situado entre o presencismo e o neo-realismo, pôde levar a efeito essa tarefa, nos anos 1930-40, é coisa que me surpreenderia, se eu não acreditasse haver homens, em todas as circunstâncias, capazes de preservar a sua individualidade e corajosos bastante para a marginalidade e a solidão.
A evolução posterior de Bettencourt fez-se noutro sentido, sem que determinadas conquistas-chave do percurso anterior tivessem sido totalmente abandonadas. A tal evolução não me parecem estranhas as personagens de certo Fernando Pessoa e de Afonso Duarte, embora aqui se não fale de influência, mas de posição e exemplo.
Eu suponho, apesar de todos os equívocos (alguns conscientemente forjados) que noções como romântico e clássico possam ter criado, comportarem estes termos bem definíveis conteúdos em referência a posições distintas do espírito perante o acontecimento e a linguagem. Distingui-los como apenas dois movimentos de um mesmo acto não me parece destruir a diferença de situações que implicam. Podemo-nos reportar à concepção nietzschiana da tragédia grega e colocar a força dionisíaca (romântica) como impulso criador e a força apolínea (clássica) como a consecução de uma linguagem organizada. Os interesses da expressão podem, no entanto, ser outros que não a comunicação ao nível de um entendimento clássico (a transformação de caos em cosmos), como acontecia na tragédia grega. Vimos já como, segundo a intenção rimbaldiana, o poema – finalidade em si mesma e realidade bastante – se consuma e organiza a um nível que repudia as ideias antigas acerca de ordem, realidade e comunicação. Eu, por mim, não compreendo como um moderno espírito romântico (e penso aqui em toda a grande poesia pós-rimbaldiana, incluindo o surrealismo) possa caminhar em direcção ao classicismo, ainda que se diga dever (ou poder) cada qual encontrar o seu próprio classicismo. Mesmo que a situação dionisíaca e apolínea correspondam a dois níveis do mesmo impulso, à maneira nietzschiana, não entendo que a surrealidade, quero dizer, a situação dionisíaca extrema, pretenda dispor-se para uma organização implicando fé num tipo de linguagem e comunicação que negaria certas recusas fundamentais do romantismo moderno. Todos quantos em certo momento acreditaram no entusiasmo (entusiasmo, no sentido holderliniano), numa visão do mundo em que o homem participa inteiramente na sua visão, confiança com que se fez coração do mito – todos esses podem muito bem, em dada altura, caminhar noutro sentido. Mas isso significará, no estado presente da aventura romântica, uma ruptura com a crença anterior, a crença na unidade intrínseca da paixão que prescinde de formas intelectualmente acessíveis de comunicação.
A última fase da poesia de Edmundo de Bettencourt antolha-se-me como uma modificação básica de atitude. Não atinge tal modificação diferença de qualidade, pois Bettencourt conserva-se o grande poeta que é. Mudança de atitude a que subjazem interesses psicológicos que não seria fácil estabelecer – apenas isso. Mas a partir de agora – e a exemplo daquela figuração de Pessoa desempenhada pelos poemas ortónimos e por Ricardo Reis, a exemplo ainda do interesse pela objectividade, a organização plástica e o valor objectual da linguagem do penúltimo e último Afonso Duarte – Edmundo de Bettencourt apresenta uma vigilância e interesse pelos signos exteriores acerca dos quais se pode utilizar a palavra clássicos, mas a que não falta – curiosamente – a ironia, embora muito subtil, quase desatenta. Esta economia irónica na construção do poema não despreza, contudo, o exercício libertário da imaginação que dá chaves para lugares onde a concepção da economia é insólita, o que torna Bettencourt uma espécie de romântico que encontrou o seu próprio – mas irónico – classicismo. Ambígua nos seus propósitos e fundamentos internos, secretamente contraditória, alguma da poesia desta última fase. O que lhe empresta, aliás, novo interesse. Esta interna contradição, esta interna riqueza desavinda, provém assim das bases românticas de uma personalidade que possui, outrossim, consciência da validade cultural da arte e da validade moral da cultura. Pessoa – e penso também no nome de Jorge de Sena – possuía estes dois apelos – o amor da estabilidade emocional, com o seu cortejo de consequentes qualidades, e o fascínio da aventura, com todas as negações humanísticas que comporta.
A Europa, levada pela ideia do impasse criado pelo surrealismo e pela impossibilidade de reiventar a crença (demolida irrevogavelmente) nos ideais da cultura ocidental, lançou-se na provisória solução desta ambiguidade. Ambiguidade que, carreada por outros lados e com a fisionomia epocal própria, foi já a de Goethe, por exemplo. Assiste-se talvez ao moroso e irremediável desmoronamento interno de toda a cultura ocidental. E desconhecemos as soluções, se é que as há.
Entretanto, o dramático esforço de Orfeu, que desce aos infernos para reunir a sua dispersão na unidade final do canto, é tarefa para cada um – e isso nos baste, mesmo que não sirva para nada, além de servir para a provisória salvação de quem nela se empenhe. O mito de Sísifo, de que fala Camus.
*
Estamos aqui perante um poeta raro que um enorme silêncio escondeu do público. Do ponto de vista literário, esse silêncio prejudicou-o, pois o que seria estupenda novidade em 1930-40 perdeu um pouco de interesse, agora. Não decerto o melhor dele, o que é permanentemente novo num poeta, mas apenas aquelas surpresas laterais que para um Apollinaire constituíam um dos valores fundamentais da estética moderna. Claro que os poemas de Bettencourt surpreenderão hoje e amanhã, mas eu gostaria de lhes ver atribuídos – e sê-lo-iam – certos arrojos, novidades, experiências, que hoje já lhes não serão. Isto, contudo, diz somente respeito à literatura e, mesmo assim, a uma província menor dela. A grande originalidade tem outros sinais e, mesmo quando considerada literariamente, não se perde por causa de aspectos secundários.
Trinta anos de silêncio pediam que o poeta fosse apresentado ao público. Essa difícil tarefa requereria um ensaísta, e não um simples admirador da sua poesia. Umas notas escritas apressadamente por alguém que não possui nem a prática nem a vocação críticas arriscam-se a dificultar, em vez de tornar mais acessível, a leitura de uma poesia tão rica como despistante, tão original como complexa, tão estranha como bela. Muitos aspectos – alguns importantes – da obra de Bettencourt nem mencionados foram ao longo destas linhas. Como fazê-lo senão através de um estudo paciente e minucioso que nada autoriza que eu faça? Limito-me a consignar, em meia dúzia de páginas, o que me pareceu imprescindível e se refere à maneira pessoal como fui tocado pela poesia do autor de Rede Invisível, e também a alguns dos problemas gerais levantados por ela.
Creio que se houvesse tido o cuidado de aparecer há vinte anos, Bettencourt se arriscaria a ser posto à margem, ou influiria então decisivamente na lírica portuguesa posterior. E, se influísse, talvez se apressara o que tanto tardou – o aparecimento de personalidades como Cesariny e Lisboa e, com eles, a formação de uma sensibilidade que ainda muito a custo vai transformando o gosto de um pequeno público, como é sempre pequeno o público cronologicamente correspondente à criação avançada.
De qualquer maneira, cabe a Bettencourt a honra de ser uma das pouquíssimas vozes modernas entre o milagre do Orpheu e o breve momento surrealista português.
Presumo ser a partir de Orpheu, desses poucos poetas posteriores e do surrealismo – nesta linha, e para diante – que alguma coisa nova e bela poderá surgir na poesia portuguesa. Talvez então se conceda a Edmundo de Bettencourt, e a alguns mais, o lugar de relevo que é seu.
[1963].
Post-Scriptum – Agora o texto não está enquadrado. Estava enquadrado primeiramente, 1963, quando pretendeu introduzir os até aí quase todos dispersos Poemas de Edmundo de Bettencourt. Era o tempo da ditadura neo-realista.
Como sempre, como em qualquer sistema de autoridade, toda a gente fazia parte dela, incluindo as vítimas. Mas as vítimas não escreviam nos jornais. A ditadura escrevia neles todos: revistas, jornais, livros, tudo. De modo que o texto foi compactamente desancado. O autor, que não estava ali para outra coisa, rejubilava. Tinha razão, uma razão fora daquilo que acontecia, uma razão depois. Não se considerava precursor de nada; sabia só que a razão dominante tinha o espaço inteiro e a força de ter para si o espaço inteiro. E alegrava-se disso, o autor, alegrava-se de não estar contido naquele espaço senão como vítima. Entretanto não constavam do texto méritos particulares. Era até canhestro, e abundante em observações ingénuas, previsões de futuro sem futuro à vista, para já não falar de muitas inocências estilísticas. Não era o que deveria ser: uma análise da poesia de Bettencourt. Ser, ambição maior, um exemplo condizendo com as palavras de Breton: «[…] toute spéculation autour d’une oeuvre est plus ou moins stérile, du moment qu’elle ne nous livre rien de l’essentiel: à savoir le secret de la puissance d’attraction que cette oeuvre exerce». Enfim, o texto mostrava unicamente o seu amor inábil. O amor inábil não ajudava. E então os guardas vermelhos precipitaram-se sobre o escrito do amor. A notícia que iam dando dos poemas propriamente ditos era vaguíssima.
Isto é: o texto não servia senão para a psicoticamente exultante pancadaria crítica. Foi uma festa. O introdutor tinha portanto as suas razões, mas eram um pouquíssimo ganho para quem desejava sobretudo que as pessoas se interessassem por umas duas dúzias de poemas soberanos que vinham dentro do livro. Custava que a algazarra dos directores espirituais não permitisse escutar a música sussurrada, custava que os poemas desaparecessem entre a inabilidade introdutória e a inépcia neo-realista.
Bom, foi tudo chão de uvas, acabou, não interessa, não existe. E, sabendo-o, o introdutor não queria reeditar o texto, queria dar o escrito por não escrito. Insistiu-se contudo em que o texto se enquadrava. Ah sim, haveria um texto para enquadrar de novo, mas não era aquele, porque o quadro era outro. Embora fosse semelhante o professorado, sempre os maîtres à penser, sempre os que dizem como está bem e como está mal. Porque, não tenham esperança, a escola não finda nunca, o mais prodigioso nela é mesmo essa capacidade de nunca findar, de recorrer continuamente a múltiplas formas de vigência. Eis do que ela sabe, é a sua única sabedoria: dizer sem parar como é.
Volto-me um bocado para trás e vejo como era. Havia dois poderes: o do regime político e esse, o cultural. E é terrível supor que o segundo era poderoso apenas porque o primeiro achava que a cultura não tinha importância nenhuma. E não tinha de facto, pois se consumia na cena cómica de os autores se lerem entre si e a grande população dos outros ser analfabeta. Mas é tão passado, tudo isto, tanto que serve só para encobrir o presente. E no presente aquilo de que se pode tratar é do analfabetismo democrático e de um caldo de culturas tão pobre em vitaminas que está fora de qualquer hipótese alimentar. A reserva tenaz e silenciosa fica em casa a dedicar-se a si própria e, fervorosamente, a saber que não está em dia.
O texto não propicia coisa nenhuma, nenhuma verdade, nenhuma evidência. É desajeitado, como no seu tempo de bulício, e inactual nos termos. Serve ao menos como documento histórico, como depoimento de uma época transacta? E se servir, para que serve isso? Sou pessimista desde o coração à cabeça. Não creio na ressurreição dos corpos e das almas. Nem creio sequer que as pessoas não-analfabetas saibam ler, e menos ainda creio que saibam ler poesia. E quando parecem saber, vai-se ver e é um equívoco. Lêem errado. Verifico mais do que suporto verificar que se pega em tudo pelos lados de fora, e se não vê aquilo que esperava ser pegado e visto pelos lados de dentro. Ora isto não põe muita fé nas transformações verdadeiras, e parece-me que Edmundo de Bettencourt escreveu os seus trinta poemas expoentes para aqueles tais que ficam em casa com a pouca poesia que se vai exorbitando.
E nada há que nos valha, nada para dizer.
[1999].
Herberto Helder
[…] revista Phala recupera um artigo do poeta Herberto Helder sobre outro poeta, Edmundo de […]
[…] “Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt”. Herberto Helder. Em Documenta Poetica, 6 de agosto de 2009. […]